Temperamento afetivo e obesidade mórbida
- Dr. Sivan Mauer
A relação entre a saúde mental e a saúde física é um campo de estudo fascinante e de crescente importância na medicina moderna. Frequentemente, condições que afetam a mente têm repercussões no corpo, e vice-versa. Uma área que exemplifica esta complexa interação é a associação entre os transtornos de humor e a obesidade. Recentemente, um estudo aprofundado investigou uma faceta particular desta ligação: a relação entre os temperamentos afetivos e a obesidade mórbida em pacientes candidatos à cirurgia bariátrica. Os resultados, particularmente num grupo etário específico, levantam questões importantes sobre avaliação e manejo clínico. (O estudo original completo pode ser acedido aqui).
O que são temperamentos afetivos?
Antes de mergulharmos no estudo, é crucial compreender o conceito de temperamento afetivo. Distante das noções populares, na psiquiatria, os temperamentos afetivos são considerados traços de personalidade estáveis, com forte base biológica e genética, que representam formas subsindrômicas ou pré-mórbidas de transtornos do humor. Eles moldam a forma como um indivíduo reage emocionalmente ao mundo e interage com ele.
Descritos inicialmente desde a Grécia Antiga e sistematizados por nomes como Kraepelin e Kretschmer, os temperamentos afetivos são hoje vistos como parte do espectro dos transtornos de humor. Os três tipos principais classicamente estudados são:
- Temperamento Distímico: Caracterizado por uma tendência crónica a um humor mais baixo, pessimismo, baixa energia, anedonia (dificuldade em sentir prazer) e preocupação excessiva com falhas. Indivíduos com este temperamento podem ter maior necessidade de sono e menor impulso social ou sexual.
- Temperamento Ciclotímico: Marcado por flutuações frequentes e abruptas entre sintomas subsindrômicos de depressão e hipomania (um estado de energia e humor elevados, mas menos intenso que a mania). Estas pessoas podem apresentar instabilidade afetiva, irritabilidade, impulsividade e dificuldade de atenção.
- Temperamento Hipertímico: Definido por um estado crónico de humor elevado, otimismo, alta energia, menor necessidade de sono, grande sociabilidade, autoconfiança e, por vezes, maior propensão a comportamentos de risco ou abuso de substâncias. São indivíduos geralmente extrovertidos e cheios de iniciativa.
É importante notar que estes temperamentos não são, por si só, doenças, mas sim traços que podem predispor ou influenciar a manifestação de transtornos mentais como depressão maior ou transtorno bipolar.
Obesidade Mórbida: um desafio de saúde pública e sua relação com a saúde mental
A obesidade, particularmente a obesidade mórbida (definida geralmente por um Índice de Massa Corporal – IMC ≥ 40 kg/m² ou ≥ 35 kg/m² com comorbidades significativas), tornou-se uma epidemia global. Longe de ser apenas uma questão estética, é uma condição médica complexa e multifatorial que aumenta drasticamente o risco de inúmeras doenças crónicas, incluindo diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, apneia do sono, certos tipos de cancro e problemas musculoesqueléticos.
A ligação entre obesidade e saúde mental é robusta e bidirecional. Pessoas com obesidade têm um risco aumentado de desenvolver transtornos mentais, especialmente depressão, ansiedade e transtorno de compulsão alimentar. Por outro lado, indivíduos com certas condições psiquiátricas podem ter maior risco de desenvolver obesidade, seja pelos sintomas da própria doença (ex: alterações no apetite, inatividade na depressão), seja pelos efeitos colaterais de alguns medicamentos psicotrópicos.
Neste contexto, a cirurgia bariátrica emergiu como o tratamento mais eficaz a longo prazo para a obesidade mórbida refratária a tratamentos conservadores (dieta, exercício, medicação), levando a uma perda de peso significativa e sustentada e à melhoria ou remissão de muitas comorbidades. No entanto, o sucesso da cirurgia bariátrica não depende apenas do procedimento em si, mas também de fatores psicossociais e comportamentais do paciente. A avaliação psiquiátrica pré-operatória é, por isso, um componente essencial no processo.
Investigando temperamentos e obesidade em candidatos à cirurgia bariátrica
O estudo conduzido por Mousfi et al. (2025), publicado nos ABCD Arquivos Brasileiros de Cirurgia Digestiva, teve como objetivo avaliar a frequência dos temperamentos afetivos (distímico, ciclotímico e hipertímico) em indivíduos com obesidade mórbida candidatos à cirurgia bariátrica e compará-los com um grupo controle de indivíduos não obesos. A intenção era estabelecer uma possível associação entre estes temperamentos e a condição de obesidade mórbida.
Metodologia empregada
Tratou-se de um estudo transversal do tipo caso-controle, uma abordagem epidemiológica útil para investigar associações entre exposições (neste caso, temperamentos) e desfechos (obesidade mórbida).
- Participantes: Foram incluídos 106 pacientes com obesidade mórbida (grupo caso), todos candidatos à cirurgia bariátrica e acompanhados no Hospital Universitário Evangélico Mackenzie, em Curitiba. O grupo controle foi composto por 100 indivíduos não obesos (IMC < 30 kg/m²), recrutados de outros ambulatórios do mesmo hospital.
- Avaliação dos Temperamentos: Utilizou-se a versão brasileira validada da escala TEMPS-A (Temperament Scale of Memphis, Pisa, Paris and San Diego Autoquestionnaire), focando nas subescalas de distimia, ciclotimia e hipertimia. Um temperamento era considerado presente se o participante pontuasse positivo em pelo menos 75% dos itens da respetiva subescala.
- Outras Avaliações: Foram também aplicadas escalas para rastrear sintomas de depressão (HAM-D), ansiedade (HAM-A) e mania (YMRS), além da coleta de dados sociodemográficos e histórico clínico e psiquiátrico.
- Análise Estatística: Os dados foram analisados usando modelos de regressão logística para calcular o *odds ratio* (OR), que estima a chance de ter obesidade mórbida na presença de um determinado temperamento, ajustando para possíveis fatores de confusão. A análise foi também estratificada por idade (abaixo de 50 anos e 50 anos ou mais).
A ligação entre hipertimia e obesidade em maiores de 50 Anos
A análise dos dados revelou informações interessantes sobre a distribuição dos temperamentos e sua associação com a obesidade mórbida.
Frequência dos Temperamentos
A presença de pelo menos um dos três temperamentos afetivos avaliados foi notavelmente alta em ambos os grupos, mas significativamente maior no grupo com obesidade mórbida (74,5%) em comparação com o grupo controle (63%). Isto sugere que traços temperamentais afetivos são comuns nesta população.
Associação com obesidade mórbida
A análise principal veio da regressão logística estratificada por idade. Enquanto nas análises gerais ou no grupo mais jovem (abaixo de 50 anos) não se encontraram associações estatisticamente significativas entre os temperamentos distímico, ciclotímico ou hipertímico e a obesidade mórbida, um resultado claro emergiu no grupo de 50 anos ou mais:
Indivíduos com 50 anos ou mais e obesidade mórbida tiveram uma chance 2,56 vezes maior de apresentar temperamento hipertímico em comparação com indivíduos não obesos da mesma faixa etária (OR = 2.56; IC 95% 1.07–6.09).
Este achado sugere que, especificamente nesta faixa etária mais velha, o temperamento hipertímico pode ser um fator de risco ou estar associado de forma significativa à obesidade mórbida. Não foram encontradas associações significativas para distimia ou ciclotimia em nenhuma das análises.
Interpretando a ligação hipertimia-obesidade
A descoberta de uma associação entre temperamento hipertímico e obesidade mórbida, especificamente em indivíduos com 50 anos ou mais, é intrigante e merece reflexão. Por que esta ligação específica?
O temperamento hipertímico é caracterizado por alta energia, otimismo, sociabilidade e, por vezes, impulsividade e busca por prazer. Algumas hipóteses podem ser levantadas:
- Comportamentos Alimentares: A busca por gratificação e a impulsividade associadas à hipertimia poderiam, ao longo da vida, traduzir-se em padrões alimentares menos regulados ou mais voltados para o prazer imediato, contribuindo para o ganho de peso a longo prazo?
- Estilo de Vida: Embora hipertímicos tenham alta energia, será que esta se canaliza para atividades que previnem a obesidade, ou pode estar associada a outros comportamentos (ex: padrões de sono irregulares, maior consumo de álcool – comum na hipertimia) que, com o envelhecimento, favorecem o ganho de peso?
- Fatores Metabólicos e Envelhecimento: A interação entre as características temperamentais hipertímicas e as alterações metabólicas que ocorrem com o envelhecimento (após os 50 anos) poderia criar um cenário onde o risco de obesidade mórbida aumenta?
- Viés de Seleção ou Confusão: Como em qualquer estudo observacional, não se pode descartar a possibilidade de fatores de confusão não medidos ou algum viés na seleção dos participantes que possa influenciar esta associação específica por idade.
É fundamental notar que associação não implica causalidade. O estudo aponta uma correlação estatística significativa naquele grupo etário, mas não prova que a hipertimia *causa* obesidade mórbida. A relação pode ser mais complexa ou influenciada por outros fatores.
Implicações clínicas
Independentemente da causalidade, o estudo reforça a importância da avaliação psiquiátrica detalhada em todos os candidatos à cirurgia bariátrica. Identificar traços temperamentais, como a hipertimia, pode ser relevante para o manejo pré e pós-operatório.
Pacientes com temperamento hipertímico podem apresentar desafios específicos no seguimento pós-bariátrico. A sua impulsividade, otimismo excessivo (que pode levar a subestimar dificuldades) ou tendência a comportamentos de risco poderiam interferir na adesão a longo prazo às mudanças de estilo de vida necessárias após a cirurgia (dieta rigorosa, suplementação, atividade física). Reconhecer este temperamento permite à equipe multidisciplinar adaptar as estratégias de acompanhamento e psicoeducação.
Conclusões e recomendações
O estudo de Mousfi et al. (2025) contribui para a compreensão da intrincada relação entre saúde mental e obesidade, destacando uma associação significativa entre o temperamento hipertímico e a obesidade mórbida em indivíduos com 50 anos ou mais. Embora os temperamentos distímico e ciclotímico não tenham mostrado associação neste estudo, a alta prevalência geral de temperamentos afetivos na amostra sublinha a relevância da dimensão psicológica na obesidade.
A principal recomendação que emana deste trabalho é a necessidade de uma avaliação psiquiátrica e psicológica abrangente no período pré-operatório da cirurgia bariátrica. Esta avaliação deve ir além do rastreio de transtornos mentais diagnosticáveis (como depressão ou ansiedade) e incluir também a exploração de traços temperamentais.
Identificar precocemente pacientes com temperamentos específicos, como o hipertímico, permite um planejamento terapêutico mais individualizado, com intervenções psicoeducacionais e comportamentais direcionadas para os desafios potenciais associados a esses traços. Isto pode ser crucial para otimizar os resultados a médio e longo prazo da cirurgia bariátrica e melhorar a qualidade de vida destes pacientes.
Pesquisas futuras são necessárias para confirmar esta associação específica por idade e para elucidar os mecanismos subjacentes à ligação entre hipertimia e obesidade mórbida.
Acesse o Estudo Completo
Para uma análise mais aprofundada da metodologia, resultados detalhados e discussão completa, recomenda-se a leitura do artigo original.
REFERÊNCIAS
Mousfi AKJ, Mauer S, Nassif PAN, Sigwalt MF, Cuenca RM, Torres OJM. Association between affective temperament and morbid obesity in bariatric surgery candidates: a case-control study. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2025;38:e1884.