Caso Clínico: Apresentação atípica de síndrome neuroléptica maligna


  • Dr. Sivan Mauer
  • Caio Augusto Rabelo Ferrarini

Introdução

A síndrome neuroléptica maligna (SNM) é um quadro clínico raro e imprevisível, associado ao uso de medicamentos antipsicóticos, sendo potencialmente letal. Seu diagnóstico precoce é essencial devido à gravidade do quadro e à possibilidade de rápida progressão dos sintomas. Caracteristicamente, a SNM se manifesta por uma tríade clássica composta por febre, rigidez muscular e alteração do estado mental, frequentemente acompanhada por sinais de instabilidade autonômica, como hipertensão, taquicardia, taquipneia, diaforese e incontinência urinária. [1,2]

Embora o início dos sintomas geralmente ocorra dentro de 72 horas após a exposição a um antagonista dopaminérgico, a síndrome pode se manifestar até 30 dias após a introdução da medicação. A progressão clínica é rápida, podendo alcançar sua máxima intensidade em apenas três dias. [3]

A prevalência da SNM foi inicialmente estimada entre 0,2% e 3,2% dos casos entre pacientes psiquiátricos internados que recebiam medicamentos neurolépticos, com base em dados de 1966 a 1997. No entanto, com o aumento da conscientização clínica e a introdução de antipsicóticos de segunda geração, a incidência diminuiu substancialmente, sendo atualmente estimada entre 0,01% e 0,02%. [4]

Um elemento motor típico da SNM é a rigidez muscular generalizada, que frequentemente não responde a medicamentos antiparkinsonianos e é uma característica central do quadro clínico. Outros achados são alterações laboratoriais, como aumento significativo da creatina quinase (CPK), leucocitose e distúrbios eletrolíticos. [5]

Embora a apresentação clássica inclua esses achados, há uma grande heterogeneidade clínica, conforme descrito nos critérios do DSM-IV, tornando o diagnóstico desafiador em alguns casos. Além disso, exames complementares, como eletroencefalograma, frequentemente mostram lentificação generalizada, enquanto análises de líquor e neuroimagem tendem a não revelar alterações específicas. [6]

Dada a sua raridade e gravidade, a SNM exige maior vigilância clínica, especialmente em pacientes expostos a medicamentos antipsicóticos, com foco no manejo precoce para prevenir complicações fatais.

Apresentação do caso

Uma paciente de 25 anos, sem comorbidades ou história clínica relevante, iniciou quadro de agitação motora, pensamento acelerado associado a sintomas psicóticos, como ideação paranoide e alucinações auditivas, além de aumento de irritabilidade e discurso desconexo.

Ela foi levada à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ainda em estado de agitação e agressividade. Segundo relato do seu irmão, foi necessária contenção mecânica e administração de haloperidol para manejo inicial, com persistência do quadro de agitação apesar das doses administradas (detalhes sobre a dose não foram informados).

No dia seguinte à avaliação clínica inicial, sem achados que justificassem os sintomas psiquiátricos, a paciente foi encaminhada a um hospital psiquiátrico para manejo especializado do quadro. Durante a internação, evoluiu com sintomas respiratórios compatíveis com pneumonia, sendo transferida novamente à UPA para avaliação e tratamento. Nessa ocasião, a paciente tinha prescrição de clorpromazina, quetiapina e risperidona, embora as doses não tenham sido informadas.

Um dia depois da nova internação na UPA, durante a madrugada, a paciente foi encaminhada ao serviço terciário de saúde devido à piora do quadro respiratório, com dímero-D em 2.000, entrando por protocolo de tromboembolia pulmonar. Na admissão ao pronto-socorro, apresentava disfagia para sólidos e líquidos, dispneia associada a dessaturação, hemoptise, tosse produtiva com grande volume de escarro purulento, além de sinais sistêmicos como sialorreia, sudorese e tremores de membros superiores e taquipneia. A paciente manteve dispneia importante, mesmo sob máscara de não reinalação com fluxo de 6 L/minuto.

Na manhã do mesmo dia a equipe médica solicitou parecer psiquiátrico devido à grave deterioração do estado clínico da paciente e à sua história. A paciente foi avaliada em leito, na sala amarela do pronto-socorro, apresentando-se confusa, desorientada, com diaforese intensa, mas sem febre. Além disso, apresentava disfagia importante, não conseguindo deglutir nem mesmo a própria saliva, sendo necessário realizar aspirações contínuas para evitar broncoaspiração. Durante o exame físico, não foram observados rigidez muscular e sinais de “roda dentada”, com tremores significativos nos membros superiores e taquipneia.

A história foi colhida com a irmã da paciente, uma vez que a paciente estava incomunicável. Foi relatado que ela fez uso agudo de antipsicóticos típicos, com a prescrição de quetiapina, risperidona e clorpromazina. Com base nos sintomas apresentados — diaforese, disfagia, taquipneia e tremores — e considerando o uso de antipsicóticos, foi levantada a hipótese de SNM. A conduta imediata incluiu a suspensão de todos os antipsicóticos e a implementação de suporte ventilatório e hidratação. Além disso, foi solicitado rastreio laboratorial, com hemograma completo, dosagem de CPK e investigação de alterações hidroeletrolíticas, além de exames de imagem para elucidação do quadro.

Exames realizados

Tomografia de crânio: normal, sem alterações.

Líquor: límpido, com glicose de 96 mg/dL e proteínas de 42 mg/dL, sem leucócitos, descartando encefalite.

Angiotomografia de tórax: foco de consolidação nos segmentos posteriores do lobo inferior esquerdo, associado a múltiplas opacidades em vidro fosco esparsas, sugerindo pneumonia possivelmente broncoaspirativa, sem sinal de tromboembolia pulmonar.

CPK: resultado de 500 U/L (valor de referência: 145 U/L), indicando elevação significativa, compatível com SNM.

Anticorpos e sorologias: pesquisa de fator antinuclear negativa, sem outros achados relevantes.

Hemograma: normal, sem alterações significativas.

Distúrbios hidroeletrolíticos: dentro dos limites normais.

A paciente foi tratada para o quadro respiratório com antibióticos, seguindo o protocolo da instituição. No entanto, na madrugada do dia seguinte à realização dos exames, ela apresentou piora no quadro respiratório, evoluindo com cansaço respiratório e necessitando de intubação orotraqueal para evitar fadiga respiratória, mantendo-se hemodinamicamente estável. Após intubação, ela foi transferida para a sala vermelha do pronto-socorro, onde permaneceu por um dia, sendo posteriormente transferida para um leito em unidade de tratamento intensivo (UTI), onde foi submetida à rotina de cuidados intensivos, com evolução favorável do quadro respiratório. A paciente foi extubada após dois dias, mas permaneceu em leito de UTI devido à continuidade da disfagia e da tosse hipersecretora, necessitando de aspirações frequentes.

Durante a internação, a paciente continuou a apresentar níveis elevados de CPK, com um valor de 1.906 U/L, sem outras alterações laboratoriais significativas. Em virtude do quadro de agitação psicomotora persistente, foi instituído tratamento com ácido valproico (10 mg à noite) e diazepam (10 mg conforme necessidade), evitando o uso de antipsicóticos.

A paciente apresentou resolução do quadro respiratório, com imagens de controle mostrando a resolução da pneumonia. Contudo, o quadro de disfagia e sialorreia importante persistiu, exigindo suporte contínuo para prevenir broncoaspiração. Além disso, o quadro de agitação psicomotora continuou, com episódios febris de até 39,5 °C, sem foco infeccioso identificado. Os níveis de CPK continuaram elevados, com valor de 900 U/L após sete dias de UTI, sugerindo a persistência da SNM como a principal explicação para o quadro clínico.

Durante todo o período de internação, o serviço de psiquiatria manteve acompanhamento contínuo da paciente. Considerando a suspeita de SNM e a persistência dos sintomas, foi sugerido o início de tratamento com agonistas dopaminérgicos, como a bromocriptina, conforme descrito em algumas diretrizes e na literatura especializada para o manejo da SNM. A bromocriptina atua como um agonista dopaminérgico, ajudando a reverter a rigidez muscular e outros sintomas extrapiramidais associados à SNM. No entanto, a medicação ainda não foi iniciada, devido à necessidade de aquisição externa, uma vez que o hospital não tinha o medicamento disponível em estoque. A família da paciente foi orientada sobre a necessidade da medicação, que porém ainda não estava disponível para a administração.

O uso de bromocriptina no tratamento da SNM é amplamente discutido na literatura como uma opção eficaz, especialmente em casos de quadro grave e resistente ao manejo inicial, como o apresentado pela paciente. A eficácia do tratamento com bromocriptina tem sido corroborada por múltiplos estudos, que sugerem que ela pode acelerar a recuperação e reduzir o risco de morte associado à síndrome, especialmente quando administrada precocemente após a suspeita do diagnóstico. [6]

A SNM, embora rara, é uma complicação potencialmente fatal do uso de antipsicóticos, especialmente quando administrados de forma aguda ou em combinações de múltiplos agentes. No caso apresentado, a hipótese diagnóstica de SNM foi levantada com base no uso agudo de antipsicóticos típicos (haloperidol) para contenção inicial, seguido por prescrição contínua de antipsicóticos adicionais, incluindo clorpromazina, quetiapina e risperidona. Este contexto farmacológico, associado a sinais clínicos progressivos, como taquipneia, disfagia, tremores e elevação de CPK, reforçou o diagnóstico, mesmo na ausência de alguns achados clássicos como febre inicial e rigidez muscular acentuada.

A literatura descreve a SNM como uma síndrome heterogênea, caracterizada pela tríade clássica de febre, rigidez muscular e alterações do estado mental, frequentemente acompanhada de instabilidade autonômica. [1,2] No entanto, os critérios diagnósticos mudaram ao longo do tempo para incluir apresentações atípicas. Por exemplo, estudos recentes sugerem que a rigidez muscular, embora comum, pode estar ausente ou ser discreta em casos em que antipsicóticos atípicos são envolvidos. [3] Além disso, a febre, frequentemente considerada um achado obrigatório, pode não estar presente no início do quadro, como observado no caso relatado. [4]

Uso agudo e combinação de antipsicóticos

O uso agudo de haloperidol em altas doses, somado à manutenção com clorpromazina, risperidona e quetiapina, configurou um fator de risco significativo para o surgimento de SNM. O uso de múltiplos antipsicóticos é amplamente reconhecido como um gatilho para a síndrome, especialmente em pacientes com pouca ou nenhuma exposição prévia a essas medicações. [5] Além disso, a administração de antipsicóticos típicos, como o haloperidol, tem maior probabilidade de desencadear SNM devido ao seu forte antagonismo dos receptores D2 dopaminérgicos, interrompendo de forma abrupta a neurotransmissão dopaminérgica. [7]

De forma consistente com o caso apresentado, a SNM também é mais frequentemente observada em contextos em que as doses dos medicamentos são rapidamente aumentadas ou combinadas. Uma revisão de casos clínicos sugeriu que pacientes com SNM frequentemente têm um histórico de aumento rápido na dosagem de antipsicóticos ou de exposição simultânea a agentes de classes diferentes. [6] No caso em tela, a introdução de três antipsicóticos simultâneos reforça a hipótese de SNM como diagnóstico primário, mesmo na ausência de todos os critérios clássicos.

Apresentação atípica

Um aspecto relevante no caso foi a ausência de febre inicial e rigidez muscular significativa, dois dos achados clínicos mais frequentemente associados à SNM. Estudos recentes indicam que até 20% dos pacientes podem apresentar formas atípicas de SNM, nas quais um ou mais critérios diagnósticos clássicos estão ausentes, [8] em particular:

febre: pode não estar presente no início do quadro, sendo muitas vezes um achado tardio. A elevação da temperatura é secundária à disfunção autonômica, que pode variar em intensidade dependendo da suscetibilidade individual e do perfil farmacológico dos antipsicóticos utilizados; [9]

rigidez muscular: embora a rigidez generalizada seja considerada um marco da SNM, sua ausência não exclui o diagnóstico, especialmente em pacientes tratados com antipsicóticos atípicos, que podem modular essa manifestação. Estudos sugerem que a rigidez está mais associada ao uso de antipsicóticos típicos em monoterapia do que em casos em que antipsicóticos atípicos são usados concomitantemente. [10]

No caso relatado, a presença de disfagia grave e taquipneia progressiva foram achados importantes e frequentemente subvalorizados no diagnóstico de SNM. A disfagia pode ser secundária à rigidez muscular do trato esofágico ou à disfunção autonômica, enquanto a taquipneia, neste contexto, pode refletir o esforço respiratório aumentado em resposta à rigidez diafragmática subclínica. [11]

Marcadores laboratoriais e o papel da CPK

A elevação significativa da CPK é um achado laboratorial fundamental para o diagnóstico de SNM e esteve presente neste caso, com níveis iniciais de 500 U/L e aumento progressivo para 1.906 U/L durante a internação. Este achado reforça a hipótese de SNM, especialmente na ausência de fatores que expliquem a elevação, como trauma muscular, rabdomiólise por esforço ou convulsões. [12] Embora a magnitude da elevação da CPK não seja diretamente proporcional à gravidade da SNM, níveis superiores a 1.000 U/L são altamente sugestivos do diagnóstico, particularmente quando associados ao uso de antipsicóticos. [13]

Manejo e tratamento

O manejo inicial incluiu a suspensão imediata de todos os antipsicóticos, conforme recomendado nas diretrizes internacionais para SNM. [14] O suporte ventilatório e a hidratação foram cruciais para estabilizar a paciente e prevenir complicações, como insuficiência renal secundária à rabdomiólise.
Para o tratamento da SNM, a literatura respalda o uso de agonistas dopaminérgicos, como a bromocriptina, especialmente em casos graves ou refratários. [15] No entanto, a indisponibilidade da medicação no hospital e a necessidade de aquisição externa atrasaram a administração do medicamento. Estudos mostram que a bromocriptina pode acelerar a recuperação clínica e diminuir a duração da SNM, restaurando a neurotransmissão dopaminérgica bloqueada. [16]

Conclusão

Embora o caso apresentado tivesse características atípicas de SNM, a combinação de uso agudo de antipsicóticos e de múltiplos agentes dopaminérgicos, além dos achados clínicos/laboratoriais, reforçaram o diagnóstico. A ausência inicial de febre e rigidez muscular significativa não exclui o diagnóstico, mas reflete a heterogeneidade clínica da síndrome descrita na literatura mais recente. A descrição deste caso destaca a importância da vigilância clínica para SNM em pacientes expostos a antipsicóticos, especialmente quando múltiplos agentes são prescritos e principalmente no pronto-socorro clínico, reforçando a necessidade de manejo precoce e multidisciplinar para prevenir desfechos adversos.

 


REFERÊNCIAS

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